Eles relatam aumento de ameaças e coação a prestadores de serviços sem 'green card'
Professora, Natalícia presta ajuda a brasileiros em situação de risco em Boston
WASHINGTON — A deportação não é o único medo dos brasileiros que vivem ilegalmente nos EUA: a proximidade da posse de Donald Trump, no dia 20 de janeiro, gera riscos de piora da situação de trabalho do grupo. Especialistas no assunto afirmam que as ameaças estão crescendo e se preparam para auxiliar estes trabalhadores, que se sentem mais vulneráveis com a eleição do magnata, baseada no discurso contra imigrantes.
O Centro do Trabalhador Brasileiro em Boston, que recebe de quatro mil a cinco mil pessoas por ano, sabe que o movimento tende a crescer. O grupo se prepara tanto para casos corriqueiros quanto para os mais graves. Na história da entidade foram registrados, inclusive, alguns episódios de trabalhos em condições análogas à escravidão.
— Avaliamos que empregadores vão ameaçar mais, deixar de cumprir com o que foi acordado, pagar menos que o combinado. Infelizmente, é a tendência - diz Natalícia Tracy, diretora do centro.
Um dos maiores problemas é quando um trabalhador em situação ilegal sofre algum acidente e o contratante não se responsabiliza. Em alguns casos, a conta do hospital chega a dezenas de milhares de dólares e é assumida pelo funcionário, por medo da deportação. Ela conta que mesmo em estados majoritariamente democratas, como Massachusetts, isso tende a ocorrer.
— Vimos há alguns dias em Connecticut um grupo parar perto de onde os brasileiros jogam bola e ficar gritando 'Construa o muro, construa o muro'. Isso gera um temor muito grande — conta ela, que organiza uma série de eventos na região (que reúne uma colônia de até 350 mil brasileiros, segundo estimativas) para tentar auxiliar com informações e diminuir o estresse da comunidade.
Renato, brasileiro sem green card que preferiu não dar o sobrenome, conta que já sentiu alguma piora, com as pessoas que contratam o serviço da firma onde trabalha fazendo piadas a todo momento. Segundo ele, muitos voltaram a chamar os trabalhadores de "ratos", "corja" ou a dizer constantemente que se o trabalho não ficar bem feito, "serão jogados do outro lado do muro":
— Isso incomoda, é claro, mas temos que saber como lidar. A melhor saída é não se intimidar e responder com uma brincadeira também.
Natalícia, contudo, teme que casos mais sérios, como situação análoga à escravidão, voltem a ocorrer. Ela conta que, desde que o centro abriu, foram cerca de 250 casos sérios, sendo três do tipo nos últimos quatro anos. Mais que uma líder da região, Natalícia é um exemplo: ela própria já foi vítima de situação degradante de trabalho e hoje é PhD pela Universidade de Boston.
Nascida em Minas Gerais, mas criada em São Paulo, ela chegou aos EUA em 1989, aos 19 anos, como babá de uma família brasileira. Trabalhava até 90 horas por semana por valores muito abaixo do salário mínimo dos EUA, não tinha direito a médicos, comunicação ou até mesmo a sair de casa. Mas decidiu ficar no país quando seus patrões voltaram ao Brasil. Casou-se com um americano, estudou e agora leciona na universidade onde obteve, em maio, o doutorado em um estudo sobre imigração e trabalho.
—Vejo que minha história de racismo e exploração ainda continua. Muita gente não sabe de seus direitos, tem medo de contar. Alguns têm vergonha de pedir ajuda, por expor que acabaram vítimas de uma situação tão vexatória.
Leonardo Freitas, especialista em expatriação e desenvolvimento de negócios, sócio da consultoria Hayman-Woodward, baseada na Flórida, afirma que este tipo de relatos de problemas começa a crescer, mas afirma que isso não é motivo para o isolamento, muito pelo contrário:
— Os brasileiros, mesmo sem papéis, não devem aceitar este tipo de situação. Todos podem buscar ajuda policial. E, caso realmente sejam vítimas de abusos, podem usar isso, inclusive, para obter o green card. Há muitas maneiras de se legalizar aqui, mas o importante é lembrar que os americanos não podem cometer crimes como coação, mesmo com imigrantes ilegais — diz ele.
Ex-agente do Departamento de Imigração dos EUA, onde atuou por 15 anos, Freitas afirma que há muita desinformação dos brasileiros ali, muitas vezes tomando suas decisões baseadas em rumores da internet. Segundo ele, desde a eleição de Trump, a busca por seus serviços cresceu 50%.
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